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Criação de Personagens (parte 1)






Se eu fosse resumir um conceito de Personagem, eu diria que é toda consciência capaz de agir e movimentar o roteiro. Se existe um conflito e uma resolução a ser alcançada, existem Personagens para sofrer todos esses dilemas.

Lidamos com as Personas o tempo inteiro quando observamos o mundo: filmes, livros, comics, atitudes midiáticas, novelas, fofocas, piadas, comerciais, seus conhecidos (eu sei que você não) em aplicativo de namoro e, ÓBVIO, no mundo dos games.

Durante a pesquisa para esse texto, encontrei um projeto de pesquisa muito bom que me deu muitas ideias sobre o que escrever e como abordar esse tema em algum nível inicial. E para você, que cria universos inteiros para serem lidos, ouvidos, jogados e apreciados, eu separei uma frase que aqui usarei com adaptada paráfrase de um dos entrevistados pela autora do texto citado:

Criar personagens é ter "Consciência de que não cabes numa única vida".



Vamos falar de nossas crias?

A primeira observação é sobre o uso do termo "consciência" ao invés de "pessoas" no meu parágrafo inicial. Faço essa escolha porque as personagens nem sempre serão seres humanos, mas, independentemente da natureza, a elas serão emprestadas características humanas em um processo de personificação. Um exemplo disso são os objetos animados do castelo de A Bela e a Fera, se você passar a enxergar as louças apenas como louças e retirar toda a magia personificadora do enredo, o conto se transforma em um simples caso de polícia, sai dos contos de fadas para um programa jornalístico e vira questão em concurso público (não deixaria de ser narrativa, mas teria drástica mudança em sua estrutura, o que alteraria sua aplicação).

A CRIAÇÃO DE PERSONAGENS


Esse é um dos processos mais íntimos que existem na mente humana. As pessoas podem partir de suas próprias aptidões para preferir criar uma personagem e todo o restante do elenco de seus projetos. Selecionei alguns modos de criação citados no projeto de pesquisa que nos auxilia aqui para organizar ideias:


a) Processos Intrapessoais: o autor tira de si mesmo a personagem. Um pedaço de si passará a mover o enredo. Nesses processos, geralmente o criador da personagem tenta "se ver", "colocar-se no lugar", daquele ser em construção.

Ele pode se perguntar "o que eu faria nessa situação?" e seu ponto de vista guiará suas escolhas. Além disso, há situações em que o autor vê naquela personagem a oportunidade de vivenciar aquilo que sempre quis e nunca conseguiu.


b) Processos Interpessoais: o autor não olha para si, mas para os outros, a fim de obter inspiração para determinadas personagens. Paulo Gustavo criou Dona Hermínia com base em sua mãe, Gabriel Schade criou Ada (a protagonista do game Elidriel) em homenagem a Ada Lovelace, quantas vezes seus projetos contaram com a participação direta ou indireta de seus amigos?

O mesmo ocorre quando há a representação de uma personagem já construída e cristalizada na cultura ou outros elementos. Ao colocar heróis com nomes de deuses gregos, signos do zodíaco ou forças naturais, o autor pode decidir por traçar física e/ou psicologicamente uma personagem com algo que se faça reconhecer como Zeus, ou os organizadinhos virginianos (e os maravilhosos geminianos S2), ou a destrutibilidade e impaciência do fogo. Da mesma forma, se a intenção for irônica, pode-se propor o oposto ao sugerido pelo nome, como um Hércules que não é forte ou um ariano que prega paz e amor.


c) Processos Contextuais: ao invés de se inspirar em elementos pessoais ou personificáveis, o autor busca inspiração em fatos históricos, ideias conceituais, traços culturais, entre outras coisas que formam o ambiente. Portanto, ao partir de uma guerra, por exemplo, o autor busca naquele momento caótico um rosto em que possa fixar sua atenção e a partir daí contar sua história. Ou se ele pensar em vícios modernos, ele se permite receber aos poucos uma personagem que tenha tais vícios e lhe demonstre seus próprios conflitos, entre os quais ele vai prosseguir no enredo.


d) Processos Visuais: é dotar visualmente a personagem de algo que lhe seja único. Portanto, uma personagem que domine a magia da água ter cabelo azul pode se tornar sua identidade visual, ou uma personagem que domine o elemento terra gostar de jardinagem pode se tornar um traço comportamental predominante. De qualquer modo, características que se podem ver no físico ou suas ações podem fazer parte desse tipo de processo criativo, complementando os anteriores.


e) Processos Onomásticos: isso é "do nome". Aqui posso citar meu próprio processo criativo pra criar a primeira versão de Okanobi. Do título aos nomes das personagens, o significado acompanha o não-dito. O jogo tem referências variadas à "coração", uma vez que "Okan" (parte do título e a montanha para onde os heróis se dirigem) pode significar "coração" em Iorubá (da mesma língua tirei o nome da protetora das florestas, Yabá, que significa "mãe" e assim ela é reconhecida no vilarejo próximo). O protagonista se chama Kardias que é uma referência a "coração" em grego, e tudo culmina na cena final em que o jogador descobre que Kardias havia morrido e seu coração foi transplantado para outra criança. Assim como outras inúmeras referências linguísticas no enredo que servem mais como detalhes degustáveis. Uma dica para esse tipo de processo criativo: busque palavras em outras línguas para usar como nomes próprios, tanto para uma referência direta ou irônica, o que pode enriquecer muito a experiência narrativa do seu jogo.


No projeto de pesquisa a autora explora esses processos de forma mais detalhada, inclusive com outros. Por ora, esses nos bastam.


E NO GAME DEV?


Diferente de como é em um livro, filmes ou novela, o jogador não receberá passivamente as informações do jogo, irá interagir com elas, irá se tornar a personagem, logo ele precisa de elementos convincentes de que ele é alguém naquele mundo com que está interagindo. Eu diria que o processo criativo é mais denso, pois o receptor não será convidado a observar, mas agir no universo que você criou. Acrescentemos um processo na nossa lista:


f) Processos Empáticos: é de responsabilidade sua criar uma personagem que sustente aquela realidade, suas motivações, as escolhas possíveis, os caminhos e até mesmo tudo o que ela viveu e não será mostrado. Iremos falar sobre essas construções de personalidade em textos vindouros. O principal aqui é entender que é de interesse do gamedev e do jogador que ele se torne uno ou ao menos se sinta em algum momento como aquele que está ali e que materialize algumas sensações como medo, tristeza e solidariedade. Por isso tão importante é o Game Design planejado.


OUÇA A CEBOLA


Existe uma técnica de criação de personagem que se constitui basicamente de "deixar fluir a história" denominada de "exercício de ouvir a cebola", mas há muitas variações didáticas para isso e é algo interessante para quem deseja desenvolver seu lado criativo. Vou adaptar aqui para que você não seja flagrado olhando uma cebola pelas pessoas que moram na sua casa e elas tenham medo de você:


- Escolha um estímulo visual, sonoro, conceitual, ou o que for. Pode ser até uma ideia, como "beleza perfeita" ou "medo da noite".

- Pergunte para esse estímulo quem ele é.

- Permita-se escutar.


Novamente, não é para sair falando com os objetos de sua casa (principalmente nessas épocas de Tik Tok), apenas pense que tudo pode ser uma fonte inspiradora. Isso foi feito desde que o ser humano adquiriu consciência semiótica e é um dom que você tem para sempre!


FAIXA BÔNUS - UM EXERCÍCIO QUE EU USEI COM MEUS ALUNOS DE ENSINO MÉDIO


Propus às turmas que a partir de uma imagem pudessem criar todo o enredo dos minutos finais dessas duas pessoas a seguir:


Não lhes passei informações das escavações arqueológicas ou qualquer outra coisa que pudesse atrapalhar o processo criativo. Eu queria que eles olhassem para as pessoas e perguntassem "quem elas são? onde moravam? o que eram uma para outra? o que aconteceu?". No geral, os primeiros minutos eram de gracinhas (até porque parecia "coisa de criança"), mas o processo da escrita criativa é se permitir fluir inspiração de tudo, até perguntar pra uma nuvem que tipo de coisa ela viu dos céus. Os resultados costumavam ser muito bons e nunca se repetiram em anos de docência.



E aí? Que herói você tem para oferecer?



Continuamos esse papo depois.


C ya.

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